Saturday, April 13, 2024

Guilt Trip Abreviada

                                     para Frank X Gaspar

 

Porque foi tanto em vão o que gostavas

mais te fugiu e deu troco menor.

Mas — se cobras — pra quê dizer amor?

se esperaste — pra quê dizer que davas?

 

És só um charco de eu e de chantagem.

Alguém testemunhou — alguém escreveu

disse ou depôs pelo teor do céu

que espelhaste sem ser à tua imagem?

 

alguém te soube autêntica altruísta

toda poalha e ar e maravilha?

(uma visão que não roçasse plágio...) 

 

Mas há aquele brilho por contágio

estendendo a toalha a uma filha 

de que te fez relato outro banhista.

Wednesday, February 28, 2024

O problema do idealismo radical e da ampulheta em espelho

A partir de Inger Christensen, Alfabeto, e de Edgar Allan Poe, “Um Sonho noutro Sonho”[1]

 

Se acreditamos que o planeta é sonho nosso

então talvez a nossa extinção o apague

mas pode ser que nem por isso que

 fosse sonho o que criássemos e

o sonho o mundo – ademais, a

ciência tem provas de muitas

coisas criadas que existem

“as árvores de alperce ex-

istem”, diz a poeta Inger

Christensen - há coisas

que sobrevivem ao seu

criador: como alperces

às árvores de alperce

os filhos aos pais

e os pais a deus

mas como se-

ria o sonho

sem esse

sonhador

último e

o último

fruto do

mun-

do

se

acreditarmos

que existe o planeta

além do nosso sonho

e que as provas da ciência não se limitam

a coisas criadas meramente delirantes, subjetivas e gerativas,

então sabemos que o nosso sonho não acaba o mundo mas os seus

frutos a nós o seu veneno o nosso sonho neste tempo de “restantes” retornando 

ao livro, cito

“em países cujo calor fará gerar precisamente a cor de carne que os alperces têm.”



[1] E guardo na mão fechada

Uns grãos da areia dourada...

Tão escassos!… mas num segundo

Dos dedos vão para o fundo,

E eu choro, ah, desabalado!

Oh, Céus! Por que os não aperto

Com um laço mais esperto?

Oh, Céus! Por que não posso eu salvar

Um só... das garras desse ímpio mar?

Tudo o que é visto, tudo o que é suposto

É só um sonho noutro sonho posto?             (E A Poe, “Um Sonho noutro Sonho”)


A contrapelo, Christensen: “pensa como um espelho // de tão vital importância; vê / no seu trono de nada / o vértice da tempestade de areia; / vê o quão banalmente repousa / no mais pequeno grão de areia / uma engenhosa vida / fóssil encerrada / depois da viagem; vê só / com que tranquilidade carrega / o cardume de começos / do mar primevo; vê só / a simplicidade de um signo / no qual como substância / a verdade se vê reflectida / vê só com que verdade, / graciosidade; deixa estar as coisas; junta / as palavras, mas deixa / estar as coisas” (pp. 40-41)

 

Thursday, February 15, 2024

Hamam


O cheiro a sabão negro diluído

numa água decantada aos poucos

lembra o hamam de Aroumd em Marrocos

onde uma vez inteira me excluí

das pregas deste tempo subtraído. 


Lá dentro uma gorda nos esfregava

e brusca era a flexão que nos amava

os corpos exalando e aluindo.


Teria também sido a arquiteta

do alçado e inclinação correta

da taipa arredondada do celeste?

o brando abaulamento a que alguém nu 

na horizontal olhando um vidro azul

nadasse onde lhe fosse tudo aberto?

Saturday, February 03, 2024

Dísticos Espáticos

                                            a partir de Lô Borges


não foi nada não foi não

não foi nada não é sim


quero como louca não

ser fantasma em tua boca


desatar um nó com outro

deixa-me fora de mim


ser avaro na clareza

é teu modo de ser caro


a mim só caos acompanha

como a qualquer coisa oca


em todo o caso me chama

de asco — eu ainda sonho


casar: elevar cada um

as asas do mesmo saco

Tuesday, December 19, 2023

Boris Lehman

 

Dessa recherche guardo as mãos indagando-se
tuas: longas, carnudas, macias
tuas: léguas
minhas: miúdas, feiinhas, sapudas
meus: dedos que ainda desdenham anéis
e onde já mal cabem
 
que são mãos de meio século
quem diria: que palpites
que alegria: como leque
como as pernas daquele par
de outro filme francês
famoso anterior /  sob os lençóis
(num coro curto com as línguas:
lucrando com a falha da projeção)
em lugar de nascença
nosso despudor huis clos
 
nossa querença nouvelle
voilà
na semi-penumbra na sala da cinemateca
 
salvo a tela:
néon-azulada por mar que nunca chegou à Bolívia
(pelúcidas vagas raramente em filme tão nítidas)
sacolejada de sangue do bebé que escorçavam
(eu nunca vira escindir um prepúcio – assim
de perto) turva, peganhenta, areada com um parto:
cabeça-vulva-placenta que não esperávamos
tão densas
 
Nossas mãos num júbilo morse
vasculhando-se:
 
promessas






Tuesday, December 05, 2023

Delta do Mekong


sendo a fala

sequente da lubrificação

pela saliva

(ou no pesadelo vedada

pela secura da Hidra)

 

sendo o canal da voz

um rasto de condensação

às vezes ainda em bruto

no visível perdigoto

de um canto

 

sendo o mar cada vez

mais nostrum

e ácido o latim

fraturado

gás suando

 

do fundo

do húmus de bentos

se risque o escuro

com fósforo branco

onde floresçam cascos

de unhas ex-escravas

e dentes

cheios de coroas 

primitivas escaras

onde a amiba a anémona

a fundente molécula

os limos abram e expirem

 

lascaremos ainda 

da calota imergente

uma écloga ao futuro

que sub-

traímos


                                                (Francisco José Resende, 1867)

Sunday, November 26, 2023

25 de Quê?

                                para o José

 

Na rua do Século, quase a meio

da Revolução dos Cravos, frente

ao Min. do Ambiente, 24/

11/2023, ele veio

 

surpreso, azoado, um tanto alheio

ao sangue no cabelo, para trás.

Tinha dezasseis anos, o rapaz

só se lembrou da mãe, no receio

 

do que ela pensaria da notícia

da vara na cabeça no passeio.

Em volta, alguma gente lhe pedia

 

que não fechasse os olhos e doía

o enxerto do futuro. O polícia

— ninguém viu — pensaria no outro dia.





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